Os sofistas contribuíram para o desenvolvimento crítico do pensamento da Grécia Antiga, adotando uma postura pragmática e contextualizada. No presente texto é realizada uma abordagem sumária às linhas-mestras seu pensamento.

O pensamento sofista surge no século V a.C. como uma resposta ao pensamento metafísico anterior, assumindo uma postura contrária à ideia de transcendência, especialmente em relação a uma noção de justiça superior de caráter material. Um dos elementos centrais do pensamento sofista é o relativismo, que afirma que a moralidade e a lei variam de acordo com as convenções sociais, culturais e políticas de cada sociedade. Nessa perspetiva, não há uma definição universalmente válida de justiça ou direito. Esse relativismo implica a negação de uma ideia natural e superior do direito, argumentando que as normas são socialmente construídas. Além disso, os sofistas valorizavam a retórica e a persuasão como mecanismos para a realização da justiça, entendida como a garantia dos próprios interesses. Para eles, a verdade objetiva era menos importante do que a capacidade de persuasão. Assim, a habilidade de apresentar argumentos convincentes e persuasivos era considerada fundamental para alcançar resultados favoráveis. Os sofistas também adotavam uma postura cética em relação à lei natural, questionando a existência de princípios jurídicos absolutos e argumentando que as leis e as noções de justiça eram construções humanas sujeitas a mudanças e interpretações diversas. Essa visão cética enfatizava a natureza mutável e relativa do direito. A relação entre lei e poder, bem como entre direito, política e poder, também era um tema central para os sofistas. Eles entendiam a lei como uma ferramenta utilizada para manter e exercer controlo sobre os outros. Nessa perspetiva, a justiça estava mais relacionada à capacidade de influenciar o sistema jurídico e obter resultados favoráveis do que à aplicação imparcial de princípios universais. Outra característica marcante do pensamento sofista era o pragmatismo. Os sofistas concentravam-se na utilidade e nos resultados práticos das leis, em vez de procurar fundamentos teóricos ou morais abstratos. Para eles, a justiça era uma questão de conveniência e interesse próprio, em vez de um princípio absoluto. É importante ressaltar que o pensamento sofista não foi…

Reconhece-se a existência de cinco grandes famílias de pensamento jurídico, que são as seguintes: Jusnaturalista: Essa corrente postula que o direito é o resultado de uma tensão entre o direito estabelecido ou positivo e uma ordem superior admitida e desejada. Essa ordem superior pode ser definida como a natureza, o direito divino, a razão ou os valores. A ideia central é que o direito deve estar em conformidade com princípios superiores que transcendem as leis criadas pelo homem. Positivista: O pensamento positivista remete o direito ao “direito posto na cidade”, ou seja, a um sistema de normas criadas e estabelecidas pelo aparelho de poder instituído. Para os positivistas, o direito é uma construção social e sua validade deriva unicamente da autoridade do sistema jurídico vigente. Sociologista: Essa corrente considera o direito como um simples fato social. Ela enfatiza a influência dos fatores sociais, económicos e culturais na formação e aplicação do direito. Os sociologistas jurídicos estudam como as normas jurídicas surgem e evoluem em resposta às mudanças sociais e como são interpretadas e aplicadas pelos atores jurídicos. Institucionalista: Essa perspetiva vê o direito como uma instituição. Ela enfatiza que o direito é um produto das instituições sociais e políticas de uma comunidade. A ideia central é que a legitimidade e a eficácia do direito estão intrinsecamente ligadas às instituições que o criam, mantêm e aplicam. Decisionista: Essa corrente entende o direito como resultado de decisões criativas, especialmente por meio da atividade judicial. Os decisionistas acreditam que o direito é moldado e desenvolvido por meio de decisões individuais em casos concretos. A ênfase recai no poder criativo dos juízes na formulação e interpretação do direito. No entanto, é importante destacar que todas essas teorias são sempre incompletas e relativas a um determinado tempo e contexto. Com o passar do tempo e a mudança da realidade e das premissas, essas teorias podem perder parte ou totalidade de seu sentido. A compreensão do…

O presente texto realiza uma sumária recensão do livro “White Rage” de Carol Anderson.

White Rage: The Unspoken Truth of Our Racial Divide é um importante livro para entender as relações raciais nos Estados Unidos. Refiro Estados Unidos, considerando o perigo da extrapolação teórica para fora das fronteiras do estudo-de-caso, ao embalo da colagem teórica com a realidade. O livro, assinado por Carol Anderson, aborda a persistente presença da raiva branca diante das políticas e lutas raciais nos EUA, enquanto resposta recorrente diante do avanço dos direitos civis e do crescimento da presença e ação política das populações negras no país. Anderson avalia diferentes momentos-chave que refletem a presença da raiva branca, como a Guerra Civil, a era da Reconstrução, o Movimento pelos Direitos Civis dos anos 1960 e a presidência de Barack Obama. Esses momentos-chave, que representam avanços de direitos das populações negras produziram reação adversa da população branca que se viu ameaçada nas suas estruturas de poder e privilégio. A “raiva branca”, de acordo com Carol Anderson, manifestou-se por meio de diversas estratégias ao longo da história, incluindo a supressão do voto negro, a segregação racial, a criminalização da pobreza, a retórica do “lei e ordem” e a desregulamentação económica. No entendimento da autora, essas estratégias foram instrumentos de entrave ao avanço dos direitos civis, de restrição ao acesso igualitário aos recursos e oportunidades e uma forma de manutenção das desigualdades estruturais. De modo a perpetuar a narrativa da sociedade pós-racial, a raiva branca tem sido escondida ou negada, enquanto se perpetua a diferenciação de tratamento e a precedência branca por parte das diversas estruturais sociais, económicas e políticas. Após a Guerra Civil deu-se uma reação violenta e opressiva face aos esforços para garantir direitos civis às populações negras, por meio das chamadas Leis Jim Crow, que institucionalizaram a segregação racial e negaram a igualdade de oportunidades. No período da Reconstrução, consequência da Guerra Civil, em que se procurou adotar medidas de inclusão das populações negras e garantia de direitos civis, a…

O termo descolonização da cultura refere-se a um processo de desarticulação das epistemologias ocidentais que colonizaram o mundo, impondo uma perceção de superioridade intelectual eurocêntrica (“racismo epistemológico”, Grosfoguel 2007). A descolonização da cultura é um movimento abrangente que procura expandir as fronteiras conceptuais e epistemológicas do mundo – a que Boaventura Sousa Santos (1995) dá o nome de “epistemologias do sul” –, que se considera ser dominado por uma norma interseccional branca, heterossexual, monogâmica e capitalista. Autores como Grosfoguel (2007), Marín (2009), de Lima Costa (2010, 2012) e outros, argumentam que essa norma prevalecente na esquerda europeia limita a diversidade de perspetivas e perpetua desigualdades estruturais. Nesse contexto, a descolonização da cultura visa superar as epistemologias ocidentais ligadas a uma universalização cultural eurocêntrica, que se baseia em uma visão branca, heteronormativa, monogâmica, capitalista e cristã. Essa abordagem hegemónica tende a marginalizar e excluir outras formas de conhecimento, experiências culturais e visões de mundo, contribuindo para a perpetuação de desigualdades e injustiças. Assim, a descolonização da cultura é um movimento de feição académica e ativista que visa desafiar as normas e abrir espaço para a valorização das múltiplas formas de conhecimento, práticas culturais e identidades subalternizadas, através de um processo de desnaturalização das hierarquias culturais, desconstrução de preconceitos e estereótipos, e promoção da pluralidade epistémica e ontológica, que não nega (na sua feição mais moderada, ao menos), o legado ocidental, mas antes procura elaborar uma crítica e avaliação dos paradigmas dominantes, ampliando as vozes e perspetivas historicamente marginalizadas. É um movimento que busca transformar estruturas e relações de poder, visando à construção de sociedades mais justas, inclusivas e equitativas. É, portanto, o resultado científico da pós-colonialidade. Em razão da sua natureza crítica e de alternativa epistémica, a descolonização da cultura tem sido utilizada como ferramenta política por movimentos sociais e partidos de esquerda. Por essa razão, pode conduzir a (i) uma negligência dos processos de hibridismo e troca culturais ao longo…

O presente texto aborda a questão da apropriação cultural, procurando identificar os consensos teóricos, bem como as formas de superação do problema.

O fenómeno da apropriação cultural não é novo. Todavia, ganhou destaque nos últimos anos com o crescimento do chamado movimento woke, tornando-se um debate politizado que envolve categorias como opressão, violência simbólica, mercantilização, descontextualização cultural, poder, privilégio, resistência cultural, apagamento cultural, autenticidade cultural, entre outras. O objetivo deste texto é, de modo sistemático, apresentar um quadro teórico coerente da questão da apropriação cultural. O contexto do debate Como afirma Fukuyama (2018), vivemos um contexto de polarização do campo social e político, transformado a partir do acentuar das questões pós-materiais e em que o ressentimento opera de modo determinante, seja o ressentimento daqueles que se sentem abandonados, os descamisados da globalização, que votam em partidos e políticos da direita radical populista, seja os ressentidos por razões de ordem identitária, como de raça, género, orientação sexual. É nesse contexto que emerge o movimento woke. Trata-se de um movimento de consciência social e política que se concentra na luta contra a opressão e na promoção da justiça social. Apesar de se ter popularizado nos últimos anos, especialmente após o assassinato de George Floyd, e se ter expandido para outras áreas, incluindo a academia, a política e a cultura popular, o termo woke tem origem na cultura hip hop dos anos de 1990 (Ahmed 2017). De um modo geral, o movimento woke centra-se na luta contra a opressão e a discriminação sob todas as formas, agregando o feminismo, o marxismo, o pós-modernismo e a teoria crítica da raça (Crenshaw 1991). Assim, o movimento woke visa uma maior igualdade e justiça social, através da identificação e desmonte das instituições sociais, como a lei e a educação, permeadas por mecanismos de opressão e desigualdade. Contudo, vários autores têm identificado os problemas do wokismo, ou seja, da sua transformação de movimento em ideologia, como seja a sua tendência para a atuação purificadora e moralista, do tipo igreja evangélica (McWhorter 2021 [ä]), para a tentativa de silenciamento de…

O presente texto dá conta da distinção entre os tipos de direitos fundamentais, a sua natureza e regime jurídico, explicitando a distinção entre direitos, liberdades e garantias (DLG) e direitos económicos, sociais e culturais (DESC), bem como dando nota daqueles que detêm uma natureza análoga aos primeiros.

Começemos pelo maior problema metodológico relativo aos Direitos Fundamentais e aos Direitos Humanos. Com efeito, tais locuções são, apenas, grandes distinções em matéria de fonte que não esgotam as diferenças de substância dos direitos que lhes subjazem. Assim, a primeira grande diferença, que configura realidades opostas, é entre os ditos direitos de liberdade e direitos sociais. Dentro dos primeiros, encontramos, ainda, a divisão entre direitos pessoais e direitos políticos. Quanto aos direitos pessoais, no plano internacional – em razão da sua inspiração anglo-saxónica –, o termo “pessoais” é substituído por “civis”. Em termos estruturais, aos direitos de liberdade/direitos, liberdades e garantias, opõem-se os direitos sociais/direitos económicos, sociais e culturais.[1] Ou seja, entre eles há uma diferença de natureza que se traduz numa diferenciação de regime jurídico, pelo que não seria possível adotar o regime dos direitos de liberdade aos direitos sociais sem incorrer numa impossibilidade técnica. Importa tomar em consideração que os direitos de liberdade são, essencialmente, direitos negativos. Ou seja, são direitos que demandam pela não intervenção do poder político, pela não invasão da autonomia da vontade por parte do Estado. É esta necessidade de garantia de uma esfera individual inviolável de autonomia, liberdade e ação, que fundamenta a criação dos DF, na sua condição de direitos elementares e pessoais (direito à vida, por exemplo). Todavia, estes são, como dito, essencialmente negativos porque transportam uma condição positiva: a proteção que se exige do Estado. Mesmo que se possa tomar esta condição como acessória ou complementar, a verdade é que a proteção é a salvaguarda da efetividade dos DF, e cabe ao Estado, enquanto pessoa coletiva máxima do direito interno, o papel de garante da inviolabilidade de tais direitos, salvo condições excecionais ligadas à segurança pública e matéria em apreciação adiante sobre suspensão e restrição de direitos. É, pois, esta dimensão de proteção que faz com os direitos de liberdade sejam tendencialmente ou essencialmente negativos. Já os direitos sociais têm…

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